Por Dalcídio Jurandir
...No bonde, Alfredo recolheu-se, sem mais aquela sensação de que o elétrico, com sua velocidade e rumor, quebrava a vidraça das janelas, impressão esta que levara de Belém quando pixote e sempre recordava em Cachoeira.
Até que o bonde ia vagaroso.
E meio sujo, seus passageiros afundavam-se num silêncio e apatia indefiníveis. Pareciam fartos de Belém enquanto o menino seguia com uma crescente gula da cidade. O bonde, cuspindo e engolindo gente, mergulhava nas saborosas entranhas de Belém, macias de mangueiras, quintais com bananeiras espiando por cima do muro, uma normalista, feixes de lenha à porta da taberna, a carrocinha dos cachorros que os levava para o fogo na Cremação, o moleque saltando no estribo e logo descendo com se fosse pago para aquilo, tabuleiros de pupunha que transpiravam ao sol, a bandeira mais roxa que vermelha de açaí, um menino de calça encarnada, o portão arriando ao peso de um jasmineiro em flor.
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Por que sua mãe não falava mais e ele mesmo não fazia perguntas?
Passaram pelo Largo de Nazaré, a Basílica em tijolos ainda, a antiga igreja ao lado. Cobrindo o Largo, mais monumentais que a Basílica, as velhas samaumeiras. À esquina da Gentil com a Generalíssimo, saltaram.
A cidade balançava ainda. Ou estava tonto com os cheiros de Belém?
No balcão do botequim da esquina, postas de peixe frito sob as moscas mereciam-lhe um olhar de espantada curiosidade. Estava sempre atento a quem olhasse para ele, receoso de ser observado. Protegia a cabeça com o embrulho que a mãe lhe dera. Vez por outra, a mágoa crescia-lhe, ímpetos de acusar a mãe. Com o sol em cima, sentia a cabeça enorme (...)
Caminhavam na Gentil.
Alfredo parecia não ter viajado no bonde e sim no barco ainda. A rua era um rio ondulante. Viu a diferença entre as suas senhas da passagem do bonde, duas de duzentos reis, picotadas, e as que lhe dava a sia Rosália, mãe de Lucíola, quando voltava de Belém com o montepio. Senhas de uma cidade para sempre perdida.
Dalcídio Jurandir
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[No excerto acima, do romance Belém do Grão Pará (1960), lê-se uma cena da Belém moderna, dotada de bondes elétricos, conseqüência do fausto “Ciclo da Borracha”. No início do século XX como hoje, a migração do interior para os centros urbanos é um realidade, que o romancista trabalha poeticamente]
FONTE: http://www.dalcidiojurandir.com.br/artigos/sobreautor/autor5/texto5.htm