Por Paulo Nunes
A história do Brasil, tão ficcionalizada pelas fontes oficiais, teve, após o processo de redemocratização, uma ajuda de peso: a literatura. Ou melhor, a literatura sempre esteve à disposição da história. Após a redemocratização do país talvez tenhamos ficado menos ortodoxos. A literatura, outrora acusada por alguns de “mentirosa”, passou a ser um instrumento indispensável para o Brasil que deseja conhecer a si, com todas as letras. Pois, como afirma o professor Hayden White, em entrevista à Folha de São Paulo, em setembro de 1994: “Acredito que a distinção entre fato e ficção foi transcendida pelo modernismo literário (...) A escrita experimental dos grandes modernistas nos mostra uma via para problematizar a representação do passado”. Como pensar no nosso futuro sem avaliar o papel que a Amazônia desempenha nesse contexto? Afinal os interesses internacionais sobre a maior floresta tropical do planeta são uma realidade de que não podemos nos esquivar.
É pensando nessa perspectiva de Hayden White, exposta acima, que vejo a “obra amazônica” de Dalcídio Jurandir (1909/1979). Dalcídio é um escritor ímpar no cenário de nossa literatura. Entre 1929, data da primeira versão de Chove nos campos de Cachoeira, e 1979, ano de seu falecimento, o autor construiu, disciplinadamente, uma obra que influenciaria em definitivo a escrita romanesca da literatura brasileira de expressão amazônica. Mais que isso, Jurandir, sabendo da importância de seu trabalho, parece ter aplicado literariamente a máxima de Eugene Horn, autor de A Hiléia amazônica, que, citado pelo mestre Eidorfe Moreira (1912/1989), afirma: “A Amazônia não é ‘terra de promissão’ nem ‘terra de riquezas incalculáveis’, mas uma terra de problemas desconcertantes, ainda por resolver” (Horn apud Moreira: 1989:12).
Palco de conflitos de classes e de grupos, o romance dalcidiano inaugura um momento em que, salvo engano, o Brasil tende a enxergar o Norte do país de modo singular, longe da ótica estrábica do exotismo de que muitas vezes foi vítima. Assim, Jurandir inscreve-se no rol dos escritores que, na visão de White, figuram entre os “grandes modernistas que ajudam a problematizar o passado” brasileiro. Não é à toa que Flávio Aguiar selecionou, para a antologia Com palmos medida (Fundação Perseu Abramo/ Boitempo Editorial, São Paulo, 1999), prefaciada por Antonio Candido, um trecho do romance Marajó, no qual Dalcídio Jurandir denuncia as injustiças do latifúndio e ironiza a ingenuidade dos projetos vazados em utopias vazias, como a que é defendida por uma das personagens-chave da referida obra: Missunga, herdeiro do coronel Coutinho, o qual simboliza o latifundiário marajoara.
A Amazônia, nos romances do “índio sutil”, como Jorge Amado chamava o autor de Chove nos campos de Cachoeira, é o cenário de êxtases e conflitos constantes. A obra, composta de 10 romances, é extensa, flui no remanso das marés amazônicas, à moda de um roman-fleuve (romance-rio), para utilizar uma expressão empregada por Massaud Moisés sobre a obra do “Extremo Norte”. Nesse conjunto romanesco, Alfredo – filho de dona Amélia (uma negra) com o Major Alberto (branco, representante da aristocracia decadente do Marajó) – atravessa várias fases de sua vida, da infância à maturidade. De certo modo, a evolução de Alfredo representa a transmutação da região amazônica. Aqueles que, entretanto, pensam estar diante de um romancista que realça a faceta exótica da floresta equatorial, enganam-se. Os romances do “Extremo Norte” são universais, uma vez que desnudam diante do leitor conflitos humanos como a solidão, o ciúme, a inveja, o amor, a disputa pelo poder. Tudo a partir de uma poética do romance que associa os níveis popular e literário de linguagem.
Detentor das maiores premiações literárias de sua época, como o “Prêmio Machado de Assis”, concedido pela Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra, Dalcídio Jurandir experimentou em vida agruras (foi preso diversas vezes; vide os documentos das polícias políticas brasileiras do Arquivo Público do Rio de Janeiro) e glórias (foi reconhecido por alguns dos mais significativos críticos literários brasileiros). O filósofo Benedito Nunes, conterrâneo do romancista e crítico literário, afirmou, em artigo no Estado de S. Paulo, em 1961: “Dalcídio Jurandir foi o introdutor da paisagem urbana da Amazônia na literatura brasileira”. De fato, a partir de Dalcídio Jurandir, não somente devido ao cenário urbano como também ao rural, a Amazônia nunca mais seria vista da mesma maneira pelos leitores brasileiros. Assim, penso que o romance dalcidiano colabora decisivamente para que a visão de uma Amazônia exótica, difundida por diversos cronistas-viajantes dos séculos XVIII e XIX, seja superada.
Em 1996, a Universidade da Amazônia lançou, em seminário de estudos sobre Jurandir, um antológico volume da revista Asas da Palavra exclusivamente dedicado ao autor de Marajó. Em 2001, a Universidade Federal do Pará e a Universidade da Amazônia reuniram em Belém, Soure e Cachoeira do Arari pesquisadores da obra do mais significativo romancista amazônico de todos os tempos. O projeto denominou-se “Colóquio Dalcídio Jurandir” e foi coordenado pelo prof. Dr. Gunter Pressller, da UFPa, que nessa tarefa foi por mim assessorado. O colóquio enfatizou então os 60 anos de Chove nos campos de Cachoeira. As ações das duas universidades têm contribuído no sentido de criar condições para a reedição nacional desse autor essencial para a literatura brasileira. Na capital do Pará, Jurandir contactou inúmeros intelectuais, entre os quais destacou-se Bruno de Menezes, introdutor, em 1924, do Modernismo no Pará e coordenador da revista “Belém Nova”, órgão “oficial” paraense da nova estética. Em 1941, na busca de melhores oportunidades, o romancista transfere-se em definitivo para o Rio de Janeiro, onde passaria mais tarde a atuar nas fileiras do Partido Comunista do Brasil, transformando-se num dos principais atores dos tensos bastidores políticos brasileiros, que desaguarão na ditadura de 64. Célebre é um episódio em que Jurandir, representante dos socialistas, confronta-se com Carlos Drummond de Andrade, representante dos liberais, pelo controle do congresso da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), realizado em 1949. Este fato histórico pode ser melhor conhecido em O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil, de Dênis de Morais (José Olympio, 1994).
Dalcídio Jurandir, como já disse, é o autor da mais significativa obra do romance brasileiro de expressão amazônica. Um dos grandes autores da literatura da Latinoamérica. E isso não é exagero. A reedição e distribuição nacional da obra dalcidiana irá comprovar esse fato. Influenciado por Balzac, Proust, Joyce, sem deixar de lado os narradores orais populares da infância passada na Ilha do Marajó, Dalcídio escreveu uma obra visceral, essencial para se conhecer os conflitos do extremo norte brasileiro (salvo engano, a região do Brasil menos conhecida dentro do país), sobretudo aqueles em que Alfredo e as demais personagens atuam em Cachoeira, Belém e no Baixo Amazonas.
Autor de períodos longos (quando o contexto pede e isso interessa ao narrador), de estilo encharcado, semanticamente norteado pela poética das águas amazônicas, Dalcídio é autor daquilo que chamei, em Pedras de encantaria (2001), de aquonarrativa. Este estilo de escrita – que nem sempre obedece rigorosamente a pontuação gramatical – contrasta-se ao de outro mestre do romance de 30 da literatura brasileira, Graciliano Ramos. Ramos, que por sua vez, é o autor daquilo que chamei de sedenarrativa. Ao contrário de Dalcídio, o mestre alagoano escreve em estilo lacônico, pausado, árido, que remete à secura do sertão nordestino. Eis o contraste entre dois paradigmas do romance brasileiro, contraste que enriquece o panorama da nossa literatura.
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Paulo Nunes é professor do Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, Pará. Mestre em Letras pela Universidade Federal do Pará. Cursa doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde escreve tese sobre o romance Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir. Autor de inúmeros ensaios, publicados em revistas universitárias e/ou literárias, Paulo escreveu, junto com Josse Fares, Portugal, nosso avozinho, Brasília, Letrativa, 2000, e Pedras de encantaria: dois estudos amazônicos, Belém, EdUnama, 2001, entre outros. Ele coordena, também com a professora Josse Fares, a pesquisa literária do projeto “Belém da Memória: a cidade o olhar da literatura”, da “Casa da Memória” da Unama.
FONTE: http://www.dalcidiojurandir.com.br/artigos/sobreautor/autor5/texto5.htm