Vou soltar a minha voz!!!
As palavras de Ismael Guiser me tocaram fundo. Quem já viveu a realidade da dança sabe o quanto é difícil e quase heróico sobreviver desta arte. Ser bailarino no Brasil é complicado demais. No Pará, então... Dancei bem menos do que sonhei nos palcos da vida. Ainda assim, senti na pele algumas dores e delícias proporcionadas pelo balé.
Sou jornalista formada desde o início deste ano, mas escrevo, neste momento, por pura necessidade de me expressar. Costumo dizer que troquei os calos dos pés pelos das mãos, mas na verdade acho que meus olhos voltaram a brilhar quando me apaixonei novamente: quando decidi estudar Jornalismo. Não tenho o “atrevimento” do mestre Guiser para falar aos meus pares, pois ainda nem me sinto tão jornalista assim. Falta muito, preciso de mais, muito mais conhecimento e prática nos teclados da vida. De qualquer forma, vou colocar aqui no meu pequeno espaço algumas das minhas inquietações atuais, dirigidas, antes de tudo, a mim mesma, já que elas não me deixam sossegar enquanto não se materializam em forma de letras.
Participei do VI Congresso Estadual dos Jornalistas, promovido pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado do Pará (Sinjor), nos dias 1 e 2 de agosto, no Hangar. Não posso deixar de fazer algumas reflexões sobre o evento e o que presenciei nele. O inusitado (aquilo que é tão procurado pelos jornalistas) do encontro foi, sem dúvida, o que aconteceu no segundo dia: a aparição de cerca de 50 pessoas ligadas a diversos movimentos sociais, como o MST, o Centro Acadêmico de Direito da UFPA e os movimentos quilombolas. Eles protestavam contra a imprensa, em especial contra a Rede Globo, e entraram no auditório no início da palestra da Lúcia Leão, paraense que é editora-executiva do Jornal Hoje da Rede Globo. Ao notar os primeiros cartazes sendo abertos, ela chegou a fazer o seguinte comentário, de forma irônica: “Que meigo”. Depois, retirou-se do local e, no seu lugar, representantes dos movimentos começaram a falar. Reclamaram, por exemplo, relatando algumas situações específicas, da programação da Globo e de sua representante local, a TV Liberal, mostrar, inúmeras vezes, uma imagem “mentirosa” do Pará e dos movimentos sociais.
Mesmo sem o som do microfone, cortado imediatamente pela direção do Congresso, os manifestantes prosseguiram. Mais de uma vez, com a ajuda do coro dos demais participantes da manifestação, foram solicitados microfone e espaço para falar. Eles pediram até para compor a mesa junto com a palestrante. Em resposta, uma pessoa da diretoria do Sinjor falou (ou melhor, gritou) que o grupo estava desrespeitando o espaço de “trabalhadores” como eles. Descontroladamente, esta pessoa pediu silêncio para poder falar, o que foi conseguido com a ajuda dos próprios representantes dos manifestantes. Depois de falar, porém, a representante do Sinjor interrompeu, aos gritos, a fala seguinte dos integrantes dos movimentos. Depois disso os manifestantes deixaram o espaço.
Lá fora, como soube pelos jornais da cidade, uma parte do grupo foi levada à delegacia, mas liberada depois de algumas horas. O motivo foi uma acusação de depredação do patrimônio público, o que não foi comprovado. Em nota, o Sinjor declarou que “trabalhadores agrediram outros trabalhadores”.
Ainda sobre o que aconteceu, conversando com alguns estudantes fora do auditório, depois do ocorrido, manifestei minha opinião contrária a da maioria deles, e disse que, com algumas ressalvas, apoiava o movimento e repudiava a maneira como o grupo foi tratado pelo sindicato. Do nada, uma pessoa da diretoria do Sinjor (não sei se da antiga ou da nova, pois muitos permaneceram na composição atual), começou a gritar comigo. Do que eu lembro, entendi que ela dizia que, se eles queriam se manifestar, que tivessem procurado antes o sindicato e marcassem uma pauta. Até hoje não consigo acreditar, por mais que tente, que o Sinjor colocaria na mesma mesa representantes dos movimentos sociais e da Rede Globo. Mesmo que colocasse, tenho grandes dúvidas se a Globo compareceria. Ou seja, penso que a maneira que eles encontraram para se manifestar foi a relatada, já que não têm vez na grande mídia, a qual, além de ajudar a marginalizá-los, raramente abre espaço para boas notícias sobre o Pará.
Algum estudante chegou a comentar que o movimento faz esse tipo de ação só para “aparecer” na mídia. Caramba, mas se eles não acham outra forma, farão o quê, marcarão pauta com a direção dos jornais e das revistas? Esperarão o Sinjor convidá-los para participar dos seus encontros? Não consigo entender a nota do sindicato, a qual faz referência ao “desrespeito ao evento” e à “agressão” que uma trabalhadora, Lúcia Leão, sofreu...
Na televisão, durante entrevista dada à Record, que também defendeu intensamente a posição do sindicato, uma estudante de jornalismo falou que sentiu medo e que o Hangar deveria ter mais segurança. A primeira coisa que foi esclarecida pelos manifestantes, é bom lembrar, foi que a manifestação era pacífica. Eles fizeram questão de falar e repetir isto. E, além do mais, não havia faca ou arma na mão de ninguém. O que será que deu medo na estudante? E quem será que a segurança do Hangar deve barrar? Pessoas negras ou, quem sabe, mal vestidas? Ouvi falar também que a indignação da direção do evento era pelo fato dos manifestantes terem invadido o espaço alugado para o encontro. Mas e a Globo e outras emissoras, não agridem e ofendem constantemente estas pessoas com informações irreais, com matérias que não ouvem devidamente todos os lados das histórias? Será que não é principalmente por esta imagem que a mídia passa que a estudante de jornalismo sentiu tanto medo?
A nota do Sinjor, usando a mesma expressão do sindicato, me agride enquanto cidadã e jornalista. Não consigo conceber que, em um espaço onde se discute temas como liberdade de expressão, regulamentação da profissão, qualidade do jornalista paraense, desafios do fazer jornalístico na Amazônia, o papel do jornalista e da imprensa na sociedade, movimentos sociais históricos de luta não tenham tido espaço ao menos para falar com dignidade. Não consigo entender como um encontro que, na véspera, destacava a importância do jornalista se colocar na posição dos entrevistados para sentir o que eles sentem (no caso, o povo paraense e amazônida), no dia seguinte mostra este cenário. Um encontro que, inclusive, teve como tema o Jornalismo na Amazônia: Novas Tendências e Desafios.
Pela quantidade de estudantes que vi por lá, bem maior que a de jornalistas, dá para começar a encontrar respostas. Talvez muitos destes estudantes sejam oriundos de universidades particulares onde, como algum palestrante bem lembrou, alguns pais primeiro procuram saber da qualidade dos laboratórios dos cursos, para depois perguntarem (isso se perguntarem) sobre quem são os professores. Talvez sejam de universidades públicas mesmo, que estão formando apenas técnicos - nesse sentido, concordo com a opinião defendida por alguns de que o jornalista precisa, principalmente, de formação humanística. E os jornalistas, por que não participaram do encontro? Se na sexta-feira estavam trabalhando, com certeza no sábado muitos não estavam.
Talvez eu consiga entender melhor o incompreensível do que presenciei no dia 2 de agosto se lembrar que em um evento programado para discutir o papel fundamental dos jornalistas diante das problemáticas de uma das maiores pautas da atualidade, a Amazônia, um dos grandes conhecedores do assunto, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, teve que fazer milagre para falar sobre a realidade jornalística na Amazônia junto com mais quatro pessoas - que somavam cinco, sendo que uma faltou. Será que o jornalista não merecia, ou melhor, será que nós não merecíamos, uma mesa temática tendo ele como expositor, como as demais mesas do encontro? Ou, ainda, o Lúcio Flávio poderia dispor de mais do que alguns minutos e dar uma palestra de cerca de uma hora, nos moldes da que estava prevista para a jornalista Lúcia Leão.
Apesar de todos estes absurdos, penso que o maior paradoxo de um congresso que tem como tema Solta Tua Voz é justamente não abrir espaço suficiente para os debates e para a voz das classes mais excluídas socialmente. Se a gente fazia uma pergunta, por exemplo, não poderia falar depois da resposta do palestrante, a não ser que gritasse, como eu fiz, sob as interferências da mediadora da mesa, quando disse que não achava que minha pergunta tinha sido respondida pelo editor de fotos do Jornal Amazônia, que insistia em dizer que havia respondido. Perguntei quais eram os critérios de escolha das fotos do jornal e por que a população tinha que se deparar diariamente com fotos de cadáveres e mulheres seminuas. Da mesma forma que os Sem Terra, tive que gritar lá do fundo do auditório para poder me expressar.
Ao final do encontro, houve a posse simbólica da diretoria e foi oferecido um coquetel aos presentes. Com a mesma palavra utilizada, na oportunidade, pela nova presidente, Sheila Faro, durante seu discurso de posse, por estas e outras “cagadas” que não pretendo me sindicalizar tão cedo. Que o inusitado ocorrido no encontro sirva ao menos de alerta à nova diretoria e a todos nós dos reais desafios da profissão e Amazônia. Enquanto isso, vou soltando minha voz por aqui mesmo, e, pedindo emprestadas as palavras do Ismael Guiser, recarregando minhas energias com jornalistas ou estudantes que possuem brilho nos olhos, tenacidade, seriedade, e, acima de tudo, um amor imenso pelo Jornalismo. E você, tem fome de quê?