Simplesmente Lu

Abril 10 2009

Tive o prazer de reencontrar na Páscoa o tio Fernando, a tia Margarida e os meus primos (Raul, Renato e Roberto), que me receberam com um saboroso bacalhau e um papo mais gostoso ainda, em São Paulo. Foi quando conheci um pouco mais da vida profissional e pessoal do tio Fernando, médico pneumologista que, como ele mesmo se define, hoje é "referência para 'novidades' tão antigas quanto a humanidade...". 

Em casa, ele ainda comemora os bem sucedidos 40 anos de casamento, completados ano passado, com a alegria dos novos integrantes da família, o casal de netos. Outro motivo para festejar é que ele tem vencido problemas de saúde e se mostra com a animação de um adolescente para tocar os livros e projetos já encaminhados. 

Atualmente, o tio Fernando dirige o Instituto Clemente Ferreira, além da clínica particular. Uma pequena prova da importância profissional dele é o convite que recebeu para integrar a Comissão de Honra do 30º Congresso Anual da Sociedade Européia de Microbacteriologia, a ocorrer em julho deste ano em Portugal, quando também foi convidado para partilhar a sua "vasta e rica experiência" com os participantes.

Além do bom humor, que eu já conhecia, o tio Fernando me mostrou outras facetas, como a sua produção poética, mas sobre isso falarei outra hora porque, hoje, divido com todos um pouco do muito que é este homem que usa seus talentos para fazer o mundo respirar melhor.    

 

 Fernando Fiuza de Melo

Depoimento gravado para o Museu da Pessoa.

Texto publicado no Livro: IINDÚSTRIA FARMACÊUTICA E CIDADANIA

ABIFARMA – 50 ANOS

1997:104-111

 

Nasci em 1945, em Belém do Pará. Meu avô, Bernardino Antônio Fiuza de Melo, foi um português que veio por volta dos anos 20 para o Brasil, adentrou no rio Amazonas e teve uma fazenda de borracha na Bolívia. Esta região foi mais tarde anexada ao Brasil e se formou o Acre. Morava com a família em Belém, de onde exportava a produção da fazenda, enriquecendo na fase áurea da borracha. Teve dez filhos, dos quais meu pai era o antepenúltimo. Acabou falecendo na fase de decadência da borracha e a fazenda no Acre foi vendida a preço de banana... Já meu pai, também Bernardino, viveu com muitas dificuldades. Formou-se contador, foi guarda-livros e depois representante comercial de uma companhia paulista de produtos elétricos e dos discos Continental. Viajava por toda a região, pelo interior do Pará, Amazonas, Amapá, Acre, Roraima e Rio Branco, passando um a dois meses fora de casa. Praticamente quem mantinha a família era mamãe, Orlandina, uma costureira. Sua família era originária de Oriximiná, cidade ribeirinha do rio Amazonas. Meu avô materno morreu muito cedo e quem sustentou a família foi minha avó, descendente de índios, também como costureira. Costurava para famílias mais abonadas de Belém e, assim, casou as filhas com filhos de famílias mais ricas. Em casa, éramos cinco; eu sou o último. O mais velho se formou engenheiro, o segundo era técnico em contabilidade, o terceiro é advogado, a quarta é modista de alta-costura em Belém e eu me tornei médico.

 

            Formei-me em 1968, na Escola de Medicina da Universidade Federal do Pará, numa turma na qual muitos fizeram política estudantil. Fui liderança universitária, presidente da União Acadêmica Paraense e militei na JUC (Juventude Universitária Católica) e na Ação Popular. Minha formatura foi no dia 11 de dezembro e no dia 13 era editado o AI-5. Já no dia seguinte, fugia de Belém para não ser preso pela repressão política. Fui para o interior da Amazônia, região do Tocantins-Araguaia, onde trabalhei como pequeno agricultor e mascate, vendendo remédios porque não tinha conseguido obter meu diploma de médico. Fiquei ali até 1970, quando fui para o Nordeste. Em Recife, trabalhei em uma agência de publicidade com um salário suficiente para montar minha casa com Margarida, minha esposa, agrônoma, também de Belém. Mantinha uma vida clandestina com o nome de Augusto Corrêa e meu primeiro filho, Raul, nasceu em Campina Grande, em 1970, quando não fazia mais Medicina. Mudei depois para Juazeiro do Norte no Ceará e acabei sendo preso em Teresina, no dia 22 de abril de 1974, juntamente com minha mulher e meu filho. Fiquei preso em Recife e em Fortaleza, submetido a torturas e finalmente solto em 12 de dezembro.

 

            Ainda na prisão, comecei a reler livros de Medicina e após ser libertado, consegui reaver meu diploma e voltei a clinicar. Um colega de turma, aluno do Prof. Osvaldo Ramos, chamou-me então para vir para São Paulo, conseguindo um estágio na Disciplina de Pneumologia da Escola Paulista de Medicina, chefiada pelo Prof. Octavio Ratto. Aí, me especializei em pneumologia, me aprofundando no estudo da tuberculose, principalmente ao passar em concurso público para o Instituto Clemente Ferreira e no Serviço de Doenças Respiratórias do HSPE. Nestas instituições fui influenciado por tisiologistas experientes, como Mozart Tavares de Lima, Bruno Quilici, Carlos Comenale e Nelson Morrone. O Brasil sempre contou com grandes estudiosos da tuberculose e tive a felicidade de conviver com muitos deles no início de minha formação. Em São paulo, nasceram meus dois outros filhos, ,em 1974 e Roberto em, 1975.

 

            Naquela altura, os conhecimentos sobre a tuberculose tinham evoluído de tal forma que já eram considerados suficientes para controlar a doença. Havia um tratamento que levava a cura. E mais: com o desenvolvimento social do Primeiro Mundo, a doença passou a ser um problema apenas do Terceiro Mundo, sendo considerada em vias de extinção tal como a varíola. No final da década de 70, a idéia que se tinha era essa. Supunha-se que até o ano 2000, a tuberculose seria extinta nos Estados Unidos. A palavra de ordem da União Internacional de Luta Contra a Tuberculose era: "Vencer a tuberculose agora e para sempre". Textos afirmavam que já se sabia tudo sobre a doença, que nem mesmo despertava mais interesse da medicina atuante. Nesta época, poucos queriam ser tisiologistas, os novos médicos queriam ser cardiologistas, oftalmologistas, reumatologistas, porque estas especializades davam mais dinheiro. Seja pela influência dos que me orientavam, seja por querer realizar uma especialidade com marcantes características sociais, me aprofundei no estudo da tuberculose.

 

            Aprendi, durante estes estudos, que a primeira tentativa de tratamento da tuberculose era o repouso, a boa alimentação e o isolamento, chamado de regime higieno-dietético (RHD). Os pacientes eram internados e isolados em Sanatórios, longe das cidades, no clima ameno das serras, onde rareava o oxigênio necessário para o crescimento do bacilo. Em 1882, no mesmo ano que Koch descobria o bacilo, Forlanini iniciava a prática do pneumotorax terapêutico, introduzindo ar no espaço pleural para as cavidades pulmonares tuberculosas, responsáveis pela disseminação, gravidade e morte da doença. Esta técnica de colapsoterapia foi desenvolvida por Jacobeus, que usava um pleuroscópios e tesouras especiais para retirar as aderência pleurais, perpetuando o pneumotorax. Luscite, ao invés de ar, usava bolas de ping-pong, promovendo um colapso maios permanente. Por fim, retirava-se uma, duas ou mais costelas colapsando um ou os dois lados do tórax. Ainda atendi muitos pacientes mutilados por estas técnicas. Vendo o RX de tórax, perguntava para eles: "Você fez 'pneu'?" - gíria usada pelos que fizeram pneumotorax. Falava-se também que o tuberculoso tinha um cheiro típico. Lembro de um doente que dizia: "Doutor, estou fedendo como um cachorro de rua molhado de chuva". Aliás de tanto conviver com eles aprendi que a tuberculose tem cheiro, cheiro de roupa mofada.

 

            Em 1923, um veterinário que operava pulmões de porcos realizou a primeira pneumonectomia. Estudos mostravam que o pulmão tinha partes independentes e que seria possível ressecá-las. Estas técnicas foram logo aplicadas na tuberculose, Iniciando a fase do tratamento cirúrgico, das ressecções pulmonares. O regime higieno-dietético privilegiava o fortalecimento do doente para vencer o bacilo, a colapsoterapia dificultava a multiplicação dos bacilos no interior da caverna tuberculosa, já a cirurgia extirpava os germes do organismo. A liderança na terapia contra a tuberculose na primeira metade deste século era dos cirurgiões. Conta-se que quando um cirurgião famoso chegava em Campos de Jordão, onde se situavam os mais importantes Sanatórios brasileiros, era recebido com banda de música. O tratamento cirúrgico foi de fato um passo novo, mas não o definitivo.

 

            Desde muito tempo se experimentou diversos medicamentos para tratar a tuberculose. Por exemplo, sais de ouro que eram usados em outras infecções, arsenicais e cálcio. Os primeiros resultados foram obtidos com a sulfas, a partir dos avanços da química alemã. Estas mostravam alguma atividade contra o bacilo mais exigiam altas doses na tuberculose, sendo eficazes na hanseníase, cuja a dapsona ainda é hoje utilizada. Até que, no rastro de Fleming, que descobriu a penicilina no início dos anos 30, desenvolveram-se os antibióticos. A descoberta de Fleming revela uma disputa pelo espaço vital no reino microscópico: os fungos produzindo substâncias que destruíam as bactérias, os antibióticos, e estas se alterando para não serem destruídas por eles, a resistência bacteriana. A penicilina, todavia, não se mostrou eficaz contra a tuberculose. A tetraciclina descoberta em seguida , tinha alguma atuação, mas era fraca e também exigia altas e tóxicas doses. Mais tarde, pesquisadores americanos descobriram um fungo que produzia a estreptomicina, com boa ação sobre o bacilo da tuberculose. Iniciava-se com a estreptomicina o tratamento medicamentoso ou quimioterápico, uma revolução de tal porte, que todo o resto entrou para o museu da história.

 

            Após o surgimento da estreptomicina percebeu-se que o bacilo apresentava uma alta percentagem de mutantes resistentes aos antibióticos. Com seu uso isolado os doentes que negativavam o escarro logo voltavam a positivar. Este problema foi equacionado com o aparecimento de uma nova e poderosa droga antituberculosa. Em 1949, uma substância já conhecida desde a década de 30, uma azida do ácido isonicotínico, foi experimentada para estimular doentes com psicose maníaco-depressiva, num hospital para alienados em Baltimore, Estados Unidos. A surpresa foi que doentes mentais também portadores de tuberculose foram curados. Mais um acaso na história da tuberculose. Este fato propiciou a descoberta da isoniazida, de alta eficácia no tratamento da doença. A associação da estreptomicina, da isoniazida e de outros medicamentos, evitava a emergência de bacilos mutantes resistentes. Foi algo que até então a Medicina desconhecia, o uso de tratamento articulado de drogas, um fogo cruzado para combater a resistência bacteriana e curar com plenitude a infecção. Surgia um regime padrão para a tuberculose, de associação de drogas, lição recentemente aplicada com o chamado "coquetel" no tratamento da AIDS.

 

            Com a quimioterapia surgia uma nova etapa no combate a tuberculose. Antes morriam 60% dos tuberculosos, 20% ficavam crônicos, outros 20% se curavam. Agora, as mortes ficavam em menos de 10% e as curas chegavam a 70%. Mas houve, no início, um problema: os cirurgiões dominavam os sanatórios e resistiram muito a entrada da quimioterapia, muitos deles abominaram a estreptomicina porque com ela perderam o seu bom negócio de operar. Com a prática sanatorial e hospitalocêntrica que predominava na tuberculose, a quimioterapia inicialmente foi aplicada nos seus primórdios com os primeiros três meses internados e o restante fora dele, o que encarecia o custo total do tratamento. Aparecia entretanto um novo aparelho no combate a tuberculose: o dispensário ambulatorial! Agora o tuberculoso não precisava mais ser segredado. A substituição do regime hospitalar por um tratamento totalmente ambulatorial, de baixo custo social, acontece com a descoberta da rifampicina, a droga mais poderosa conhecida na luta contra a tuberculose. Com este antibiótico foi possível diminuir de 12 para 6 meses o tempo de tratamento, dispensar a estreptomicina injetável de difícil aceitação pelo paciente e estabelecer regimes apenas com medicação de uso oral. Era uma segunda revolução dentro da revolução que se instalara com a quimioterapia. Eu vivenciei exatamente este momento no Brasil.

 

            A tuberculose, que já havia experimentado um grande descenso de incidência em todo mundo desenvolvido, graças aos avanços sociais, reduzia-se mais ainda com a quimioterapia medicamentosa, que além da cura, redução das mortes, diminuía acentuadamente o período de transmissão. Estes fatos justificavam a concepção de uma doença controlada. Mas a tuberculose é uma doença de reativação. Na maioria dos casos o bacilo infecta o organismo sem provocar sintomas, hibernando nele de forma latente. Ele volta a se desenvolver quando encontra baixa imunidade, em geral causada pela subnutrição. Assim a tuberculose recrudesceu no mundo todo graças a um paradoxo e um casamento bem sucedido. Hoje a doença cresce pelo aumento da miséria das populações periféricas e pela longevidade conquistada pela qualidade de vida dos desenvolvidos. Porque o velho também tem menor resistência. E recrudesce assustadoramente na associação com a pandemia do HIV, e a queda da resistência imunitária por ele provocada. Fico pensando nesta mudança de expectativa, antes estudava uma doença quase arqueológica, hoje sou referência para "novidades" tão antigas quanto a própria humanidade...

 

            O Brasil adotou um modelo de tratamento auto-administrado, em que o doente recebe o remédio e se trata em casa, volta a cada mês para receber os medicamentos até sua conclusão ao longo de 6 meses. Este modelo, de responsabilidade estatal, facilita o abandono do tratamento, especialmente se considerarmos que a melhora ocorre já no final do primeiro ou do segundo mês. Interrompendo precocemente o tratamento, o doente não consegue eliminar todos os bacilos e a doença se reativa com seleção germes resistentes às drogas usuais, mais potentes e mais baratas. Resultado: o abandono permite o desenvolvimento de formas multirresistentes da doença, que exigem um tratamento com novas drogas, de experiência limitada, tóxicas, caras e muitas inexistentes no mercado brasileiro. Esta tuberculose multirresistente pode ser transmitida para os contatos mais íntimos, especialmente os de menor resistência, por exemplo crianças e os portadores de imunidade baixa, entre estes os portadores do HIV. Este é um dos atuais desafios da tuberculose e vem mobilizando cientistas de todo mundo para sua solução.

 

            Recentemente a OMS recomendou um tratamento diretamente observado, o DOT da sigla inglesa, para evitar o abandono e suas consequências. Sua introdução no país esta sendo discutida, mas sua aplicação exige uma reestruturação da rede pública de assistência à saúde reconhecidamente deteriorada. Este sim, para nós, brasileiros, talvez o maior desafio...

 

 

publicado por Luciane Barros Fiuza de Mello às 23:31
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Oi, meu nome é Julia e eu fui paciente do Dr. Fernando. Sou a Julia mencionada acima, filha da Nieves. Realmente, o Dr. Fernando foi muito especial para mim. Hoje tenho 30 anos. O ocorrido foi quando tinha 18 anos. Eu estava indo morar nos EUA e precisava fazer uma chapa do pulmão - requesito para se morar fora - ora que fui "diagnosticada" com tuberculose por uma residente em um hospital de SP. Na hora meu mundo desabou... Eu dizia para minha mãe que eu ia morrer, que não iria mais viajar... Ai ela e meu padrasto Ton me levaram até o Dr. Fernando. Com o laudo da anta da residente nas mãos, o dr. Fernando apenas pediu minha radiografia. Sem que lesse o laudo, ele disse que eu não tinha absolutamente NADA. E que a tão sábia médica havia dito que eu estava com tuberculose, o Dr. Fernando disse que eram as minhas cavidades do pulmão. Suas palavras soaram como se um anjo estivesse me salvando da pior notícia que qualquer pessoas poderia ter, ao meu ver na época e pela minha idade achava que era o meu fim. Depois da minha consulta, soube que ele iria viajar e ficaria fora 1 ano, fazendo serviço voluntário!!!! Além de um excelente médico, ele tinha um coração enorme e puro.
julia ric sentoamore a 21 de Novembro de 2011 às 18:48

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