Simplesmente Lu

Março 03 2010

“Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos — só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.

 

“Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.

 

“Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra. Não quero perguntar por que, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim.

 

“Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor, mas agora estou livre de ti. Venho do longe — de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart.

 

“Não é confortável o que te escrevo. Não faço confidências. Antes me metalizo. E não te sou e me sou confortável; minha palavra estala no espaço do dia. O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo.

 

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. 


“É de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade.

 

“Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. 

 

“Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então. 


“Escrevo-te porque não me entendo.

 

“Vou te fazer uma confissão: estou um pouco assustada. É que não sei aonde me levará esta minha liberdade. Não é arbitrária nem libertina. Mas estou solta. 


“Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás, uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo.

 

 “Escrevo ao correr das palavras.

 

“Você que me lê que me ajude a nascer (...).

  

Trechos de "Água Viva", de Clarice Lispector

publicado por Luciane Barros Fiuza de Mello às 07:40
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